Diante da crise recente das Lojas Americanas, algumas perguntas surgiram: as auditorias não identificaram esses problemas? Como foi possível passar tamanhos rombos?
Para entender melhor, esse caso em específico gerou dúvidas sobre os mecanismos de controle e contabilidade utilizados. Nesse episódio, o ex-CEO Sérgio Rial anunciou inconsistências nos balanços da empresa, que chegavam a R$ 20 bilhões. A crise levou à queda de cerca de 80% das ações da empresa, e as dívidas logo atingiram R$ 43 bilhões, sendo posteriormente revisadas para R$ 47,8 bilhões.
A principal causa do prejuízo, segundo Rial, foram as operações de “risco sacado”, em que empréstimos bancários eram utilizados para pagar fornecedores. Essas dívidas não foram devidamente registradas nos resultados financeiros da empresa, e a auditoria feita pela consultoria PwC também não identificou essas irregularidades.
A Americanas entrou com pedido de recuperação judicial, e os bancos credores, como Santander, Itaú, Safra e BTG Pactual, foram questionados a respeito da operação de “risco sacado” durante a auditoria. As falhas nas auditorias independentes também foram apontadas, levantando questões sobre a eficiência dessas empresas e seu papel na detecção de irregularidades contábeis.
Além disso, houve falhas nos controles internos da Americanas, permitindo que o rombo bilionário fosse escondido dos diretores e executivos. A venda de ações por membros da diretoria no fim de 2022 também levantou suspeitas de uso de informações privilegiadas.
O processo de recuperação judicial foi iniciado para garantir que a empresa possa honrar seus compromissos. No entanto, é provável que ocorram demissões durante o processo. A Americanas enfrentará dificuldades de acesso a crédito e possíveis problemas com fornecedores e parceiros comerciais.
A crise da Americanas teve um grande impacto no mercado financeiro, com queda no valor das ações e saída de investidores. Fundos e debêntures que utilizavam ações da empresa também foram afetados negativamente.
A Auditoria não viu?
Em relação à auditoria da PwC, empresa de auditoria independente que assumiu o lugar da KPMG em outubro de 2019, ainda não houve um posicionamento da organização a respeito do assunto, alegando que não comenta temas de clientes “por questões de confidencialidade e regras de sigilo profissional”. No entanto, tudo isso criou um grande desgaste para a empresa, que ainda poderá responder criminalmente sobre o tema no decorrer da investigação em andamento.
A situação causa estranheza tendo em vista que, na mais recente auditoria completa da Americanas, referente ao exercício de 2021, a PwC aprovou as demonstrações financeiras da companhia sem qualquer ressalva.
No relatório datado de 24 de fevereiro de 2022, a PwC afirma: “Em nossa opinião, as demonstrações contábeis mencionadas acima refletem adequadamente, em todos os aspectos relevantes, a posição patrimonial e financeira da Americanas S.A. e suas subsidiárias em 31 de dezembro de 2021, bem como o desempenho de suas operações e fluxos de caixa consolidados”.
Embora tenham sido destacados os principais assuntos de auditoria (PPA) no documento, como é praxe, nenhum deles está relacionado às falhas contábeis recentemente comunicadas pela empresa. Os cinco pontos de atenção mencionados pelos auditores foram: reestruturação societária, avaliação do valor recuperável do ativo intangível, combinação de negócios, contingências fiscais, trabalhistas e cíveis e incidente cibernético.
José Augusto Barbosa, sócio da Audcorp, empresa especializada em auditoria, explica que o caso não é comum, e esses erros deveriam ter sido observados. “Entre os trabalhos realizados por uma auditoria, existe um procedimento chamado de carta de circularização, que é um documento emitido pelos credores ou devedores contemplando a posição contábil registrada em seus balanços, que devem ser comparados com os lançados na contabilidade da empresa auditada, inclusive as relativas a risco sacado”, afirma Barbosa.
Quanto à possibilidade de um banco excluir dados da carta de circularização a pedido do cliente, é uma situação totalmente improvável, considerando o risco legal envolvido — tal fraude ocorre somente mediante envolvimento ou cumplicidade de um funcionário da instituição bancária.
Todavia, para atender ao pedido de circularização dos auditores, a empresa pode pedir à instituição financeira que forneça por escrito o detalhamento apenas de determinadas operações de crédito, excluindo as operações ou os dados sobre o risco sacado, daí nasce a possibilidade de a empresa ter induzido a auditoria ao erro. Contudo, esse entendimento é meramente uma suposição e qualquer posicionamento antes do fim das investigações é prematuro.
“Nas redes sociais, investidores, analistas e influenciadores financeiros questionaram a atuação da auditoria por não ter identificado o “erro” contábil. A empresa também analisou — e aprovou sem ressalvas — as informações contábeis do IRB, pouco antes de ser constatada a fraude nos balanços. Além disso, a empresa também auditou a Petrobras, que atravessava o escândalo da Lava-Jato, e a gigante chinesa Evergrande, que passa por uma grave crise”, explica José Augusto.
“Em casos dessa magnitude, os auditores, quando se depararem com esse tipo de situação, devem comunicar aos administradores e aos órgãos responsáveis, em especial a CVM e COAF, considerando que o responsável pela análise fiscal e contábil também pode responder civil e criminalmente, caso seja configurado omissão ou não divulgação quanto a fatos constatados”, alerta o especialista em auditoria empresarial.
O que chama a atenção, contudo, é o fato de uma grande companhia — que inclusive contratava uma auditoria especializada para analisar sua contabilidade e detectar qualquer tipo de incongruência — não ter notado o imenso buraco-negro que engolia a própria empresa.
“O foco negocial de qualquer auditoria é gerar confiança ao mercado de que as demonstrações financeiras sob sua chancela se encontram em conformidade com as normas contábeis e que as informações reportadas pela empresa auditada são consistentes e verdadeiras”, acrescenta Barbosa.
O fato é que a PwC atualmente responde na justiça por ação civil pública, movida pelo Instituto Brasileiro de Ativismo Societário e Governança, que busca explicações e reparação de prejuízos causados por suposta negligência cometida pela auditoria.
Como ficam as auditorias
Augusto da Audcorp explica que toda ação gera uma reação. “Após os casos recentes de inconsistências ou erros contábeis com possível responsabilidade sendo atribuída às auditorias, muito se tem comentado e aumentam as discussões a respeito do papel dos auditores nas empresas e sua relevância para stakeholders do mercado de capitais, tais como sócios, investidores, credores, governo e outros”.
Em decorrência disso, as normas profissionais de auditoria no que se refere às questões inerentes à condução dos trabalhos a serem implementados pelos auditores, as responsabilidades e o julgamento profissional, as avaliações inerentes aos riscos, entre outros aspectos, deverão ser adotadas com um maior rigor sob a ótica dos órgãos fiscalizadores responsáveis pela profissão.
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